Sangue nas paredes, no sofá, nas cortinas, no tapete e além da janela. 
Sangue em meu peito, no chão, no porão, nas portas e em tuas mãos.
Como carregas contigo pedaços de mim? Por que não me deixas completo?
Se com tua presença não posso ser agraciado, por ela não quero ser perturbado.
Vá, mas não deixe resquícios que estivestes aqui.
Lembras quando deixei-lhe tocar minha mão? Naquele momento alcançastes meu coração. Só não sabia que dele tirarias pedaços e os deixaria faltando.
Agora fostes, mas por que deixar a marca aqui?
Como podes carregar contigo pedaços de mim? Me quero completo.
Sentir o vento nos cabelos, o cheiro do oceano, a brisa fresca de um dia de inverno à beira do mar, a melancolia das ondas vindo de encontro às pedras, a imagem perfeita do vazio numa poesia esculpida na natureza. Estou com saudades de tudo aquilo que me fazia sentir vivo, que me fazia sentir como alguém de verdade, a doce ilusão de um propósito.
Eu preciso te encontrar, preciso ter de volta. Quero de volta aquilo que me roubastes no momento em que te vi entrar naquela sala. Por que tinhas que roubar meu precioso? Por que tirastes de mim a única coisa que ainda me fazia sentir o sabor amargo da vida? Por que não pude por um fim nisso? Por quê?
Tu me destes o descanso eterno para a minha agonia sem fim, mas eu a quero de volta! Por que tivestes que tirá-la de mim?

...e daquele dia em diante ele nunca mais olhou para trás.

Os dias passaram, as semanas findaram, os meses se foram e os anos acabaram, mas continuava o mesmo, aquele olhar sórdido e pueril, era impossível não reconhecer o que se via.
E a pobre garota olhava com desespero, sentia que a vida estava nas mãos de alguém que não importava-se com as consequências que as atitudes mundanas poderiam ter. A justiça própria de um Deus. A arrogância de um ser onipotente. O julgamento de um louco.
Sem pestanejar, torceu-lhe o pescoço dizendo, "o julgamento foi feito, a condenação decidida, é hora de pagar pelos teus pecados, que a paz esteja convosco". Torceu tão facilmente que parecia feito de papel.
O sorriso dos seus lábios eram aterradores, seu olhar apático denunciava a falta de consciência do que havia cometido. Não importava mais nada, era seu próprio julgamento o julgamento de um Deus... e daquele dia em diante ele nunca mais olhou para trás.

A luz brilhou no olhar...




Olhava à rua sem ao menos saber o que via. Apenas ficava ali parado, como se a mente não resguardasse pensamento algum, nem mesmo uma fagulha de outrora. Expressava na face a emoção jamais obtida, admirava, observava, olhava vazio para o nada. Não era de se esperar menos após a insanidade tomar conta, mas não acreditava que do coração esvairia-se o menor que fosse dos sentimentos.
Ah, o sentimento, há algum tempo já não sabia do que se tratava, somente os pensamentos mais aterrorizantes eram contemplados dias atrás. Agora nem isso.
E olhando para a rua, à noite, sob a luz da lua cheia, solitária, imponente, dona da escuridão que pairava sobre a terra, via nada, apenas a rua. Foi então que a luz brilhou no olhar e refletiu tudo, como um espelho da alma... refletiu nada.

Prólogo

Despertei, repentinamente, do estado de inconsciência que abateu-se sobre mim após as doze doses de uísque que havia tomado na noite anterior. Encontrei-me estirado sobre o refluxo provocado pelo estado etílico no qual eu me encontrava até então. Antes tivesse contemplado a gélida face da pilha de ossos ceifadora de almas, ao menos não teria saboreado o nauseante gosto do meu jantar novamente. Pareço meio trágico ao colocar desta forma, mas adentrar os portões do inferno seria um tanto quanto menos desagradável e desconfortante que continuar a realizar essa triste tarefa da qual fui encarregado a qual chamam de "viver".
Motivos não me faltam para por um fim nesse fardo que carrego, mas para minha mais profunda infelicidade, coragem não foi me dada por aquele que dizem que criou tudo e todos para findar à mim mesmo. Por mais banais que eles, meus motivos, tendem a parecer, creio com todas as forças que minhas atrocidades já foram pensadas vezes, e vezes antes de minha pobre existência, mas nunca realizadas.
Não lamento por coisa alguma que algum dia, num vislumbre de insanidade, tenha feito. Foi graças à ela, a falta de consciência humanitária, que consegui externar minhas vontades repreendidas e torná-las reais. Parece-me um pouco repugnante o fato de um ser, como eu, ter capacidade para realizar tal ato, mas mesmo que incompreensível, é aceitável, ao menos para mim, que todas as pessoas tenham um fim digno. Quando digo digno, quero dizer, digno da pessoa que ela é, ou foi. Falo da pessoa interior e não aquela que tenta parecer perante a sociedade hipócrita da qual faz farte.
E é isso que lhes dou, a oportunidade de morrerem dignamente, acordado com seus atos em vida.